segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Passarinho

A liberdade anda me segurando tanto pela mão, que teimo em seguir pelos caminhos mais cheios de pedras, os pés andam calejados de tanto andar descalços, as mãos arranhadas de tocar nos espaços sem medo, os olhos cheios de lágrimas de olhar pro fundo do precipício. Será que ela vai soltar minha mão um dia ?

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Reticente

"Será que o sonho que a gente deixou ainda quentinho suado no lençol verde-água nos aceitará de volta ou teremos que ficar quarando aqui no sereno de la calle até o sistema de saneamento eliminar todas as sarjetas das nossas napas farejadoras de fracassos? "
Xico Sá

domingo, 14 de setembro de 2008

O amor acaba

Por Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

sábado, 6 de setembro de 2008

Epifania-Saudade-Desapego

Por Viveca Santana

Ele queria que segurassem a mão dele verdadeiramente, um dia. Tinha sido enganado e mantido pelas mazelas do mundo e a vida foi muito dura com ele. Havia um quê de olhos tristes embaixo daqueles óculos pesados, de quem tem muita coisa para ver e dizer, de quem não olha para os lados, de quem só quer ser visto, lembrado, percebido.
Com medo daquele mundo todo, preto e branco para ele, abaixava os olhos, escondia de quem quisesse olhar de perto e ver quanta honestidade tinha na sua pupila colorida.
Era o mais doce e bondoso de todos. Ninguém via naquelas mãos qualquer possibilidade de fazer mal, mas ele afirmava sempre que seria capaz, que tinha uma maldade inata sim, latente dentro dele. Mas ninguém via.
Ele queria que parecesse isso para parecer mais forte.
A tal falta de apego em alguns, camuflada em tanto carinho e sensibilidade era para não sofrer, com tanta falta de altruísmo daquele mundo que nem era dele. Mas com tudo isso, sofria duplamente, confiava demais em quem não valia sua bondade.
Uma convívere expunha sua maldade, dizia que o amava, mas o amor não era isso.
Ela representou esse amor como uma coisa arrasadora, um fio de navalha que cortava o coração dele a cada dia, aumentando sua mágoa do mundo.
E o menino ía passando despercebido com todo aquele brilho contido.
Nas noites ficava mais triste, sozinho, conversava com si mesmo - punha a mão segurando a cabeça que pesava, pensando nas coisas duras da vida. Em coisas sem sentido.
Era uma busca contínua por onde ele estava. Estava ali ? Não sabia.
Há pouco tempo perdeu muito da confiança nas pessoas, sua rotina ficara sem os dias de loucura que estava acostumado a buscar.
Passou um tempo sentindo falta deles, perdido, mesmo que estes ímpetos não valessem tanto a pena e tivessem sido a causa de algumas da suas cicatrizes mais visíveis, as que não saravam, as que dóiam quando ele lembrava.

...

Um tempo longo passou-se. Passaram-se as experiências tristes, ele decidiu que sim.
Nos dias de hoje, no presente, sorria da maneira mais simples. Sorrir não machucava mais. Sua vida voltou a ser como antes, como muito tempo antes. Era gostoso ver esse tempo passar. Buscava nas coisas que tinha deixado para trás e eram boas, um recomeço - voltou a ser o menino de óculos pesados e pupila colorida.
E todos enxergavam ele diferente.