quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Tô Voltando...

Composição: Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós

Pode ir armando o coreto
E preparando aquele feijão preto
Eu tô voltando

Põe meia dúzia de Brahma pra gelar
Muda a roupa de cama
Eu tô voltando

Leva o chinelo pra sala de jantar
Que é lá mesmo que a mala eu vou largar
Quero te abraçar, pode se perfumar
Porque eu tô voltando

Dá uma geral, faz um bom defumador
Enche a casa de flor
Que eu tô voltando

Pega uma praia, aproveita, tá calor
Vai pegando uma cor
Que eu tô voltando

....

Diz que eu só volto amanhã se alguém chamar
Telefone não deixa nem tocar
Quero lá, lá, lá, ia, porque eu tô voltando.

domingo, 25 de outubro de 2009

Vazio

Por Viveca Santana


Por dentro um vazio cerrado, as cortinas entreabertas com uma cor de carne exposta. Respirando, o vazio saia em partes, abafado e com um som de assovio, saía e voltava a ser vazio lá dentro, não tinha dor, não tinha amor, não tinha nada.
O teto que olhava com as mãos sobrepostas no peito, ainda era descascado e sem a tinta que ela já devia ter providenciado faz tempo: tinha mofo e algumas formigas seguindo seu caminho infinito.
A casa era rarefeita com o ar que ela soprava todas as tardes e, suspensa naquele calor escaldante dela e do quarto, ouvia os barulhinhos de si como cigarras interrompidas.
O coração batia mais forte, a respiração empurrava o corpo tenso, afundava comprimindo a barriga magra.
O silêncio persistia, repetido, como se juntasse cacos espalhados e enchesse suas mãos, que antes só guardavam lembranças e retalhos dos outros.
Tinha que entender a desordem, endireitar os cabelos, espantar as cigarras pro sol. Andar pra longe que nem as formigas.
Pensou em como suportou a felicidade sem doer e como conseguiria arrebatar a tristeza encravada em sua pupila. A força do tempo já a empurrava depressa pros 30.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Pensamentos de ordem patológica


Caixas de tarja preta, lenços embrulhados ao lado da cama, sonhos encarcerados, guilhotinados embaixo dos travesseiros, lembranças esgarçadas aos montes entre suspiros, vícios, rabiscos de cadernos, gosto de lágrima quando passo a ponta da língua em volta dos lábios, aquele cheiro de mofo de quem ficou dias presa em casa, mão no peito, mão no rosto, unhas desfeitas, refluxo, estômago dolorido das ressacas, o corpo moído da idade que vem cavalgando atrás de mim, eu ainda de camisola, esperando a vida passar por perto.


foto: Vinicius Xavier

domingo, 6 de setembro de 2009

A dor

Por Viveca Santana

Era só mais uma dor, para calejar a sua pele pálida e tornar ela mais dura e fria do que já era.
Era mais um alfinete, destes de pontas coloridas, que atravessavam suas costas, do lado do peito, um pouco dos olhos, que ainda lacrimejavam um pouco, mas eram bem menos que antes.
Ela já sabia.
Acostumou-se com a dor que vinha sempre assim, homeopática, devagar, mas vinha em algum momento do dia, do mês ou do ano.
Muitas vezes nem esperava mais, ela viria mesmo que não quisesse - arrasadora, inerte e dolorida.
Haviam os momentos que achou que havia se livrado dos alfinetes, das palpitações, da boca seca e da falta de ar, mas a dor sempre surgia nos momentos mais inoportunos, levando ela pelos pulsos cheios de hematomas, segurando com um pouco de bondade, ela sempre disponível. Aceitava as pedras duras, que tentava arrastar com os pés descalços, para algum lugar: não haviam remédios, flores, doces ou afagos que afastassem os encontros dela com a dor, porque a dor ainda se divertia com o sorriso e a fraqueza dela.
Mesmo machucada de corpo inteiro, ainda acreditava que qualquer dia não sentiria mais nada, as feridas iriam cicatrizar e a dor cansada da rotina e das pedras que ela cansava de carregar pro mesmo lugar, não viria mais.

domingo, 23 de agosto de 2009

Bela flor

Por Viveca Santana e Potato

Bela flor, que em paz no jardim resiste
Que deixa o vento despetalar
com o prazer do teu sopro

Vive, brilha, mas intocada
as cores tuas ante as primaveras, desbotadas
a vaidade segura, tremulante

O perfume guardado em surpresa
a solidão intensa
impregnada em essência frágil

Bela flor, que em paz no jardim resiste
vai plantando sentimento, bela flor,
plantando em qualquer parte

Nestas pétalas soltas, minha flor
o vento leva a certeza
de que num dia de sol,
a primavera volta pra te mimar

domingo, 9 de agosto de 2009

Alzira

Por Viveca Santana

- Eu sei quem você é, Alzira. O jeito que você esconde as mãos de unhas roídas, cheia de incertezas e ansiedades, a maneira que segura o copo de vodka, mais alto que o rosto, querendo se esconder nas pedras de gelo lá dentro. Eu sei tudo sobre você. Até o jeito que você se perde numa conversa quando não quer participar e fica por aí, sei lá onde, viajando em alguma loucura, se dissimulando. Outro dia percebi como você anda, querendo arrancar o sapato alto, jogar eles longe, cair descalça ladeira abaixo, correndo de braços abertos na rua, tocando nas mãos de quem não conhece, como se conhecesse faz tempo, em outras vidas.
-...
-Você é louca Alzira ? Devia voltar para a terapia, fazer Ioga, parar de beber tanto, parar de escrever tanto, ser normal. O médico disse que é bom você tomar leite. Você só toma café o dia inteiro, não te faz bem, meu amor. Olha, estou falando contigo - você se distraí até com o cachorros da rua. Tá ouvindo o que eu digo, Alzira?
-...
- Anda, pára de desenhar no vidro.
-...
- Quando chegarmos em casa, vou jogar aqueles cds estranhos que você ouve numa caixa e guardar no armário - eles não te fazem bem. Todas as vezes que vejo você ensaiar dançar aquilo no quarto, tenho medo de ter que te internar de novo. Lembra do que o médico disse?
- Lembro.
- Tem que ser um pouquinho mais normal nessa vida, Alzira. Ou as pessoas nunca vão gostar de sua presença. Eu sempre fico com vergonha quando você vem com aquele papo de Truffaut, Nouvelle Vague, aquelas bandas estranhas e sei lá o quê. Ou quando você ouve alguma música e começa a dançar sozinha querendo tocar na luzes, no ar. Todos ficam olhando pra você. E suas roupas? Você não combina nada, como as meninas normais...não pode Alzirinha. Ninguém entende o que você diz, meu bem. Você fica chata assim.
-...
-Tá tomando o remédio que o doutor mandou?
-Tô.
-Olha quando a gente chegar em casa, a gente faz pipoca e passa o dia vendo o futebol na Tv. Depois eu te levo pra ver a mamãe, se você não estiver cansada. Ela sente sua falta... Ou a gente procura na locadora um daqueles filmes de gente normal pra rir um pouquinho, tá?

domingo, 26 de julho de 2009

Quinto Fragmento da Décima Terceira Voz

Tanto sangue dentro do meu derramado coração, era assim? Talvez fosse, mas não se trata disso. Lamúria insuportável, o corpo, esse que se arrasta com suas carências. Não precisa pressa, calma lá. A porteira está fechada para quem quiser passar, era isso? Já te disse que não responderei. Quero saber, e depois? Passaram-se meses, ele voltou. Foi longo. Doía. Continua doendo. Ainda não acabou. Passa, passará. Às vezes ficávamos deitados na minha cama enquanto eu tentava decifrar o seu destino. Marte, Ossanha gostava das folhas, das pedras. De peixes também. Ele me ensinou que as pedras eram vivas. Desde então eu as mantenho imersas em copos cheios d’água, para que cresçam. São muitas. Agora espero outro. Que como ele, não será mais do que Uma Nova Metáfora do Encontro. Por enquanto espio as pombas nas cumeeiras. Quando não há música, canto. Quando paro de cantar, como maçãs. Os talos estão jogados pelo quarto, entre os lençóis. Apodrecem como meus sentimentos, jogados na via-láctea. Esfrego a lâmpada, mas o gênio se foi. Talvez me bata outra vez contra as grades da janela até me levarem para a mesa de choques.
Caio Fernando Abreu

Para ler ouvindo: http://www.youtube.com/watch?v=08_2eTj3wsA
(uma das preciosidades do New Order, numa versão do Radiohead, muito boa como sempre).

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Ópio

Por Viveca Santana

Sonhou que havia uma orda bem grande de formiguinhas, passando pelo seu corpo.

Ela não se preocupou em momento algum em catá-las dos pés sujos de terra, de pólen e grama ou dos braços, de onde surgiam muitas muitas muitas, bem avermelhadas e com pressa em fugir nas suas poucas curvas.

Voltou a deitar e deixou as formigas continuarem a se espalhar pelo seu vestido vermelho, pelos cabelos encaracolados, pelos lábios e pelas mãos fininhas - o cheiro delas era forte, formavam um sabor latejante na sua boca e por algum motivo ela não tinha medo algum.


Preferiu ficar olhando o sol forte e raiado, acreditando que era tão doce que as formigas se enchiam aos montes e se uniam, no seu corpo cor de açúcar.

http://www.youtube.com/watch?v=K57szVmdVac

terça-feira, 7 de julho de 2009

Nossa música

Por Viveca Santana

A nossa música tocou hoje, depois de meses em que evitei de ouví-la, com medo de chorar ou lembrar de você. Ou com medo de ter medo, de novo.
Algumas farpas continuam aqui e ali, ainda bocejo sem sentir graça no despertar, ainda tenho parte do teu cheiro quando tento ou procuro dormir.
Você ainda se escora lá no meu peito ardendo, em algum lugar que não consigo encontrar e tirar de mim, mesmo que à força (e que arranque parte da pele e desprenda meu sangue, me dilacere de maneira invisível). Talvez esteja em todos os lugares que passam lembranças pelo meu corpo, não sei.

A nossa música, a minha música, a tua música, me fez chorar de novo e eu percebi que fujo dela todas as vezes, porque você não está aqui para falar como ela é bonita de ouvir, ou da quantidade de coisas que ela pode te fazer lembrar ou querer esquecer.
Virou meu fantasma, mas com certa beleza que não sei explicar o que é, com um medo intenso de reaver emoções que eu quis guardar.

Dessa vez consegui ir com ela até o fim, trêmula, derramando lágrimas em cada estrofe, apertando os olhos e pensando em você, na sua voz (que por mais que eu ache que não vou lembrar, eu lembro), em uma quantidade de coisas que eu quis dizer e não tive coragem e agora estão presas em mim, algemadas pra onde eu resolver me atirar, na intenção de abandonar pra sempre.

A coragem que eu achei que existia, transformou-se numa dúvida que você me cobriu, deixou riscada na pele e agora é a única herança que eu tenho de você, mesmo que eu não queira. Mudou tudo na carne dura, ausente e pálida de antes.

Nossa música ficou aqui, comigo pra eu lembrar. Pra eu mudar mesmo que eu acredite ser impossível.


Para ler ouvindo Love Will Tear Us Apart- Joy Division

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Cautela

"Se não te cuidares o corpo
Cuida teu espírito torto
Que teu corpo jaz perfeito

Se não te cuidares o peito
Cuida teu olho absurdo
Que teu peito tomba morto
Diante de tudo

Se não te cuidares, cuidado
Com as armadilhas do ar
Qualquer solto som pode dar tudo errado"

Paulo Cesar Pinheiro

sábado, 13 de junho de 2009

"Tenho pensado se não guardarei indisfarçáveis remendos das muitas quedas, dos muitos toques, embora sempre os tenha evitado aprendi que minhas delicadezas nem sempre são suficientes para despertar a suavidade alheia, e mesmo assim insisto - meus gestos e palavras são magrinhos como eu, e tão morenos que, esboçados à sombra, mal se destacam do escuro, quase imperceptível me movo, meus passos são inaudíveis feito pisasse sempre sobre tapetes, impressentida, mãos tão leves que uma carícia minha, se porventura a fizesse, seria mais branda que a brisa da tardezinha."

sábado, 6 de junho de 2009

Lula e suas comparações fantásticas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse nesta terça-feira, que um país que pode achar petróleo a 6.000 metros de profundidade, pode achar uma caixa-preta de 40 cm a 2.000 metros.

domingo, 31 de maio de 2009

"Vai passar, tu sabes que vai passar.
Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está aí, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como "estou contente outra vez".
Caio Fernando Abreu

domingo, 24 de maio de 2009

A caverna e o mito

Por Moca e Viveca Santana

Imaginava que o quarto era uma caverna e ele parte do mito de Platão.
Não um teorema, algo que houvesse explicação lógica, via-se agora personagem da Alegoria da Caverna, em meio a embriaguez.
Tinha alguns balões no teto, entre algumas estalactites, daqueles que se compra em banquinhas com palhaços vendendo em volta de parques itinerantes.
Sérgio Sampaio era o que escorregava do rádio àquela hora, "Conveniente", ele diria. Os olhos doíam em meio à escuridão, de vez em quando um flash descontrolado de luz os fazia doer e ele levava as mãos ao rosto, esfregava com força, se via tentado a um sorriso incoerente, nele vinha de graça, uma interrogação rápida.
Bom, nada mais lógico.
Em volta, as mesmas garrafas de vodka barata, os mesmos maços de cigarro espalhados pelo chão, o gosto cortante de fel nos lábios - ambiente impregnado das ressacas que colocavam pra fora com força, as dores e temores que o perseguiam. A rádio agora tocava qualquer coisa sem importância e as mãos tocavam o chão, sentia-se vivo, mas enterrado numa caverna funda, escura. Sem conseguir se reerguer, entregou-se ao fardo da cama. Tudo agora era uma metáfora da caverna, a mesma que ele havia se fechado com uma pedra grande e imóvel na entrada.
Lutou mais uma vez para abrir os olhos cegos pela falta do sol, atrofiados desde que descobriu os próprios defeitos (por um triz não tornou deles, motivos para escorrer para o fundo e ficar imerso e terminando por ensurdecer para os sons cotidianos).
A culpa era dela. Ela o aprisionou naquele lugar.
Alice virou o rosto e seguiu seu caminho de balões de banquinhas, sem o frio das estalactites, ávida pela luz das futilidades. Levou consigo a chave, o jeito de sair das sombras, a liberdade dele e muitas outras coisas que não lembrava agora, mas que certamente eram culpa dela.
Calado na caverna - escura, silenciosa, segura, mórbida, lá estava ele, sem muitos metros quadrados para sobreviver, o ar adocicado da vodka nauseava, as estalactites lá em cima, afiadas ao seu encontro, ele de costas pra entrada, forçado a olhar pro teto.
O que vinha de fora, ainda era latente desejo, orgia intensa no corpo, lembrança dela que fazia parte de cada osso, de cada músculo, das vértices do quarto; o cheiro forte do perfume de Alice ainda estava em cada transpiração soprada naquela escuridão, fazia parte da tortura imposta por ela.
A caverna escura tinha partes do corpo da mulher fossilizada nas paredes: das coxas, do sexo, dos fios de cabelo, partes dos lábios e do pescoço - pedaço que se pudesse mutilaria e guardaria para ele. Por que não havia pensado nisso?
Ele estava encarcerado para sempre às lembranças - raios quentes que coravam e ardiam passando como chicotes pelo seu corpo magro, enfraquecido das tolices que haviam dito dias antes e arruinado pra sempre o amor que seria pra sempre, se realmente fosse.
O quarto era uma caverna e ele era sim, um homem-sombra do mito de Platão, pensou.
Ele morreria ali (era questão de tempo). O mito que se descrevia podem esquecer, ele não lembrava mais.

* Para ler ouvindo Kashmir, Led Zeppelin

sexta-feira, 15 de maio de 2009

"Tateio, tateias, tateia. Ou tateamos, eu e tu, enquanto ele se movimenta sem dificuldade entre as coisas? Sei pouco de ti, apenas suspeito da tua existência desde quando descobri que nem eu nem ele éramos os donos de certas palavras. Como se tivesse percebido um espaço em branco entre ele e eu e assim - por exclusão, por intuição, por invenção - te adivinhasse dono desse espaço entre a luz dele e o escuro de mim. Tateias, também? De ti, quase não sei. Mas equilibras o que entre ele e eu é pura sombra.
Estou me afastando, estou indo embora e preciso que me entendas antes que eu vá, crucificado na parte externa do vagão de um trem em alta velocidade. Tento devagar, mais claro: ele não se afasta. Dia após dia, eu noto, torna-se mais simpático, mais eficiente, mais solícito - para utilizar palavras que não sei bem o que significam, mas imagino sempre alguém sorrindo muito, fazendo reverências, curvando constantemente a cabeça, como uma gueixa. Gueixa, ele, a grande puta, com seu silêncio de passinhos miúdos e pés amarrados. Preciso tentar certa ordem no que digo, e dizer de novo, vê se me entendes: ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto.
Dentro dele, eu espio o de fora de nós. E não me atrevo.
O que vejo nos outros, com seus grandes poros abertos, são caras demasiado vivas. As caras de fora se debruçam sobre ele e eu tenho medo, eu nunca poderia olhar de frente para todos aqueles olhos boiando na superfície branco-gelatinosa, raiada de veiazinhas vermelhas, e eu sinto nojo. Não dos olhos, mas do interior das caras que transparece nas veiazinhas. Também não são as bocas, mas os gosmosos vermelhuscos de dentro, quando se abrem demasiado. Os inúmeros pontinhos pretos dos narizes, às vezes subindo para a testa, entre as sobrancelhas, o interior rosado dos narizes, as goelas abertas com suas umidades móveis ao fundo, cheias de pequenos espasmos, miúdas convulsões. Quando as grandes caras vivas se debruçam, sinto que transpareço nas veiazinhas dos olhos deles, e tenho medo que apenas um piscar me lance para fora, entre as coisas pontudas.
E quando ele abre sua boca movediça para escarrar palavras, gotas de saliva e mau hálito, tenho medo de ele ser essa palavra, essa gota, esse hálito. O mesmo de quando esfrega as palmas das mãos e solta no ar os feixes de energia, como se fosse uma vibração, não um ser.
Sempre posso parar, olhar além da janela. Mas do interior do trem, nunca é fixa a paisagem.

..
E quase não temos tempo."

Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu.

domingo, 26 de abril de 2009

Ninguém merecia Laura

Por Viveca Santana

Ninguém merecia Laura.
Nem a vida, nem as flores, nem a música que ouvia repetidas vezes e serviam de trilha para abraços no travesseiro.
Muito menos seus amores.
Suas manias enjaulavam no seu mundo próprio, as unhas roídas denotavam as fraquezas e perdas que ela esperava camuflar, as cicatrizes a levavam pra onde fosse, pelo que queria dizer e não disse.
Amava excessivamente à todos, peito dolorido, cheio de hematomas por isso.
A amargura que brotava de seus lábios tinham o gosto da ausência e da hostilidade de alguns, que ela queria que fizesse parte do seu caminho, ou a merecessem num encontro de poucas horas.
Incansavelmente, Laura tentou amar a todos como a si mesma, quis se desfazer do destino, fazer os encontros acontecerem, mesmo que não dependessem dela. E se decepcionava.
A ansiedade-das-unhas-roídas demonstravam a sede de amar de Laura - e ela mais uma vez não quis que a decepção a abraçasse tão amigavelmente como estava acontecendo.
A vida seguia adiante, trancou-se para os que não permitiam seus jeitos agudos - talvez se sentisse menos irreal se resolvesse cruzar a rua sorrindo, pensou.
A idéia de que conspiravam para que ela jogasse todo aquele amor em algum jardim que ela gostava, aquele amor (ela sabia) que era demais para depositar em alguém, corria pelos seus pensamentos, sopravam nos seus ouvidos, viravam soluços.
Lembrou da infância quando elevava os sentidos e sentimentos aos extremos, pensava muito em si e punha prazer ardoroso à satisfação em ver alguém, quando oferecia um regalo, ou quando ouvia que doariam seus sonhos à sua presença.
Prazer para Laura era prender à todos perto dela como se o ato de respirar dependesse disso.
Na juventude, costumava esquecer dos amores depois de sofrer, latejar e reerguer, tão rápido, para começar um novo, mais de acordo às suas vaidades e histerias.
Os que não mereciam Laura tinham pena dela, aproveitavam - se de sua bondade e do seu afeto pelo mundo, seguravam sua mão, enchiam ela de carinhos, depois abandonavam ela lá sozinha, com palavras prontas aos montes, promessas e planos para começar a desistir.
A moça inacessível, sem a obviedade das mulheres comuns que atraíam pela feminilidade e pela possibilidade de controle dos cavalheiros, fez-se desfeita dos balangandãs, que obstinavam a beleza, tornou-se morta ao sacrifício do convívio e viveu sozinha até os 40 anos.
Laura sabia que tinha valores que quase ninguém compartilhava: a vontade de doar sem medo de se perder, a doçura de ser o que era, mesmo que isso fosse ridículo e se aturava assim mesmo. Repetiu isso para si muitas vezes, para compensar sua dor, mas o abismo se abria na frente dela, atraente. Ainda teve tempo de procurar algo bom na solidão que a acompanhava.

Porém, nem ela merecia o cerco que fez em si mesma, então aos 40, calou seus pensamentos e cansou de se merecer.
O abismo foi o único que se abriu pra ela.

terça-feira, 24 de março de 2009

Rivotril e dois dedos de vodka

"Hoje, quando o tintureiro chegar e perguntar:
"Tem roupa pra lavar?", vou disfarçar e dizer "Tem não, senhor..."
Da última vez que dei minhas roupas para lavar após assistir a um show do Radiohead, vi no dia seguinte o tintureiro voltar com uma certa melancolia estampada na face...
A música deles impregna até na roupa.Não desgruda.
Logo após o show, é impossível sequer ligar o rádio do automóvel. Conversar com alguém, nem pensar...
Dependendo de quem esteja com você então, é uma ótima desculpa.

Na manhã seguinte você ainda acorda enlevado, perguntando: o que é aquilo que passou ontem por mim com tanta força? Mas erra feio quem reduz estes sentimentos somente à melancolia. Este é só um dos inúmeros calafrios que se sente ao ouvi-los ao vivo."


Acabei de ler essa crítica e foi exatamente a sensação que tive. Não consegui ainda escrever nada sobre, nem sei se conseguirei.


terça-feira, 17 de março de 2009

Rivotril 0,5 mg



Já perdi as contas da quantidade de vezes que ouvi essa música, das repetições dela na minha cabeça. Se não for a preferida é uma das que fazem parte da trilha das minhas viagens, das que eu ponho pra curar a insônia que nunca vai.

domingo, 15 de março de 2009

O dia que Júpiter encontrou Saturno

Caio Fernando Abreu
"Foi a primeira pessoa que viu quando entrou.
Tão bonito que ela baixou os olhos, sem querer querendo que ele também a tivesse visto. Deram-lhe um copo de plástico com vodka, gelo e uma casquinha de limão.
Ela triturou a casquinha entre os dentes, mexendo o gelo com a ponta do indicador, sem beber. Com a movimentação dos outros, levantando o tempo todo para dançar rocks barulhentos ou afundar nos quartos onde rolavam carreiras e baseados, devagarinho conquistou uma cadeira de junco junto a janela.
A noite clara lá fora estendida sobre Henrique Schaumann, a avenida poncho & conga, riu sozinha.
Ria sozinha quase o tempo todo, uma moça magra querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz.
Molhou os lábios na vodka tomando coragem de olhar para ele, um moço queimado de sol e calças brancas com a barra descosturada.
Baixou outra vez os olhos, embora morena também, e suspirou soltando os ombros, coluna amoldando-se ao junco da cadeira.
Só porque era sábado e não ficaria, desta vez não, parada entre o som, a televisão e o livro, atenta ao telefone silencioso.
Sorriu olhando em volta, muito bem, parabéns, aqui estamos.
Não que estivesse triste, só não sentia mais nada."
...

quarta-feira, 11 de março de 2009

Roda gigante

Por Viveca Santana

Me deixa descer
dessa roda gigante
não tem arco
nem barco
que me leve a cair

É meu o apelo
do zelo
do encontro
de todo desconto
das coisas pra ter

Me deixa descer
ter vento no rosto
escutar passarinho
ouvir bem de manso
o jeito do mar

Me deixa descer
sentir com o gosto
a graça do toque
de pôr pés no chão

Descobrir a delícia
das coisas mundanas
do gozo
do cheiro
de um cafuné

Me leva sem trégua
sem costume
descalço
sem a cor do negrume
da vida por lá

Só não me deixa sozinho
(a vida lá sei que é dura)
sem prosa
sem verso
e demora a passar

Sei do tal desencontro
do impulso
do excesso do gesto
da dor que a vida dá

Mas quero assim mesmo
o aperto do abraço
o laço
o acaso
que a gente se prendeu

segunda-feira, 9 de março de 2009

Menina, Amanhã de Manhã (o Sonho Voltou)

Tom Zé

Menina , amanhã de manhã
quando a gente acordar
quero te dizer que a felicidade vai
desabar sobre os homens, vai
desabar sobre os homens, vai
desabar sobre os homens.

Na hora ninguém escapa
de baixo da cama ninguém se esconde
e a felicidade vai
desabar sobre os homens, vai
desabar sobre os homens vai
desabar sobre os homens.
Menina, ela mete medo
menina, ela fecha a roda
menina, não tem saída
de cima, de banda ou de lado.
Menina, olhe pra frente
menina, todo cuidado
não queira dormir no ponto
segure o jogo
atenção (de manhã)
Menina a felicidade
é cheia de graça
é cheia de lata
é cheia de praça
é cheia de traça.
Menina, a felicidade
é cheia de pano,
é cheia de pena
é cheia de sino
é cheia de sono.
Menina, a felicidade
é cheia de ano
é cheia de Eno
é cheia de hino
é cheia de ONU.
Menina, a felicidade
é cheia de an
é cheia de en
é cheia de in
é cheia de on.
Menina, a felicidade
é cheia de a
é cheia de e
é cheia de i
é cheia de o.

sábado, 7 de março de 2009

Tua pele mais profunda

Júlio Cortázar

"Cada memória apaixonada tem suas madalenas e a minha - é o perfume do tabaco claro que me devolve a tua noite espigada, à lufada da tua pele mais profunda.
Não o tabaco que se aspira, a fumaça que reveste as gargantas e sim aquela vaga equívoca fragância que o cachimbo deixa nos dedos e que em algum momento, em algum gesto despercebido, sobe com seu látego de delícias para encabritar a lembrança que tenho de ti, a sombra de tuas costas contra o branco velame dos lençóis. "

...

domingo, 1 de março de 2009

Tinindo trincando

Por Viveca Santana

Alguns passos ébrios pelo Rio Vermelho, as mãos passando pelas paredes ressacadas pelo sol, sons fora do tom, a voz dela não saía mais.
Já eram quase 4h da manhã e ela incansável continuava, andando com seu All Star surrado de tempo, tropeçando nos próprios passos e olhando tudo em volta.
Para ela era tão bom viver intensamente assim, sem a tonalidade das vozes, fora do ar por instantes, sons , toques que tomavam o corpo todo.
Não lembrava o que tinha que fazer amanhã - certamente acordaria de ressaca, andaria atrás de um copo d´água e um comprimido, derrubando tudo e voltaria para cama.
Alguém veio falar com ela, tocou seu ombro (não queria que a vissem naquele estado, baixou o rosto). Não teve vontade de responder, a viagem estava ótima sem falar, sem a realidade que aquela quantidade de coisas exigia, um monte de espaços que ela estava pulando e que ninguém entenderia.
-Quem era mesmo ? perguntou a si mesma.
Viu que não tinha que se misturar.
Não conseguiu traduzir uma linha do que pensava, as frases surgiram descompassadas e ela sabia que não percebiam o que queria dizer.
Envergonhou-se.
Que a deixassem só de novo.
Calou mais uma vez, franziu a testa, acendeu o último cigarro da carteira, pediu mais uma cerveja e continuou a olhar pro mar.
Não se sentiu nem um pouco decadente, era bom sobreviver ali : barquinho lá longe, gente lá longe, um menino perdido na noite com um catavento nas mãos, longe, longe.
Tudo tinha uma graça particular que a rotina jogava fora.
O mundo podia acabar que ela não tinha mais nada a dizer.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Final de semana em Salvador


[Ando em círculos
Paro em círculos
Espero em círculos_ ]

[Fumo em círculos
Solto fumaça _ ]

[A porta continua fechada_ ]

Natimorto, Lourenço Mutarelli.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Conto desnecessário

Por Viveca Santana

Saíram os três naquele carro prateado, música alta para entorpecer, Sílvia com seu rosto tranqüilo de mulher moderna-amadurecida, Paulo com seu olhar crítico nos passantes da rua, (meio criador de cordel, meio personagem sertanejo), Aracy com olhar perdido, os dedos recebendo o vento da noite, corpo quase pra fora do carro, avessa ao que pudesse ocorrer.

Sílvia só queria amar, o amor que vinha daqui há dias, pensava na garrafa de champanhe que queria comprar, nos dotes que daria, nos olhares que receberia, no amor puro vindo de longe. Adorava sentir o cheiro de fotossíntese que as plantas faziam no fim de tarde.

Paulo era dado a discussões rápidas. Semântica, linguística, fonética, tudo se tornava miúdos e papos intensos, com direito a percepções etílicas e tapinhas nas costas.
Era um rapaz que levantava dúvidas e gargalhava sempre, queria criar a polêmica. Simples, mas complexo nos assuntos cabíveis, peleador nato das conversas filosóficas.

Aracy só queria receber o vento nos dedos. Tentava pegar parte dele e nunca conseguia. Gostava de luzes na sua retina, do gosto seco que a cerveja deixava nos lábios, a falta de lucidez e a possibilidade de enxergar tudo com as digitais catando o vento teimoso.

...
Continuaram os três pela cidade, amando, complexando de maneira simples a vida e tocando a brisa. Seguiram na noite de sábado, amigos, com suas minúcias e sem mais nada pra contar.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Uma história de borboletas

"É assim mesmo - eu disse. - O mundo fora da minha cabeça tem janelas, telhados, nuvens, e aqueles bichos brancos lá embaixo. Sobre eles, não te detenhas demasiado, pois correrás o risco de transpassá-los com o olhar ou ver neles o que eles próprios não vêem, e isso seria tão perigoso para ti quanto para mim violar sepulcros seculares, mas, sendo uma borboleta, não será muito difícil evitá-los: bastará esvoaçar sobre as cabeças, nunca pousar nelas, pois correrás o risco de ser novamente envolvida pelos cabelos e reabsorvida pelos cérebros pantanosos e, se isso for inevitável, por descuido ou aventura, não deverás te torturar demasiado, de nada adiantaria, procura acalmar-te e deslizar para dentro dos tais cérebros o mais suavemente possível, para não seres triturada pelas arestas dos pensamentos, e tudo é natural, basta não teres medos excessivos - trata-se apenas de preservar o azul das tuas asas."
Caio Fernando Abreu.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

ELE

Por Viveca Santana

Hoje ele acordou e sussurrou no meu ouvido que era do mundo.
Que a vida ali tinha gasto, tinha tempo e ele precisava ir, perseguir com os olhos o que estava mais longe. Nunca havia sido meu, estava de passagem.
Esse foi um dos poucos dias que acordei com ele ao meu lado, compartilhando a respiração noturna, me abraçando forte, sem nem me conhecer tão bem, eu cheia de abismos de antes à minha volta, ele vestido com um carinho e respeito próprios que atraíam muito mais que qualquer beleza que pudesse existir a olhos nus.
Agora ele apertava o rosto no meu como se nos conhecêssemos há anos, a barba um pouco por fazer, o ronco de sono descontraído, que virava música gostosa pra dormir, essa era a parte irracional do sono dele que pra mim se tornou um dos momentos mais gostosos de toda noite - como se a vida da gente tivesse sido dividida em pedaços (antes e depois dali, só para mim, na verdade).
Ele tinha que ir e gostava de ver o mundo de longe, eu via isso nos seus olhos, mesmo quando dormia.
Esse encantamento não era dele por mim, mas ele me encantou só pra si de maneira solitária, no dia que me apontou as estrelas e me disse que as conhecia, que vivia numa delas.
Acreditei em cada palavra sua como se novamente acreditasse em algo e na idéia de que conhecíamos cada parte do corpo um do outro, como se os seus lábios me pertencessem de antes das estrelas surgirem nos meus olhos descrentes, perdidos e críticos.
Eu na minha vidinha fria, nunca tinha reparado nas estrelas, a beleza pra mim era sempre da Lua, da sua grandeza e essas mesmas estrelas, se tornavam coisas pequenininhas em volta, e eu não reparava.
Sempre tinha uma nuvem perto para apagá-las, nunca fizeram muita diferença, diante da minha visão realista do que era o céu - azul, longe, inatingível, acima de mim. Era uma noite de calor e eu pela primeira vez olhei as estrelas com vontade de olhar de novo e continuar olhando, sem me frustrar, sem ficar desatenta, sem me cansar.
Mas ele tinha que ir ver mais longe e ansiosa, me deixei perguntar por quê ele tinha aparecido tão tarde, tão rápido e tão intensamente.
Não havia nada de amor naquelas palavras ainda, mas havia uma magia tão grande, cega e viva que se eu percorresse o caminho daquelas estrelas por mais um tempo, o amaria sem o medo que antes tinha do amor.
O menino das estrelas não sabia,diante de tantas coisas que seus olhos ainda estariam por ver longe, mas tinha feito eu me tornar uma pessoa mais sensível, simples e até a presença dele, da estrela dele - passageira como as do céu- fez com que os encontros poucos se tornassem um presente.
Agora eu torcia para que ele levasse as estrelas pra onde fosse e deixasse uma só pra mim: eu iria continuar a olhar pra ela sempre que quisesse não esquecer.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

"...descobriu a Palavra fez amor com ela
em cada esquina embaixo de cada ponte
uma árvore de sorrisos nasceu sobre o cimento
discutiu-se com raiva te pagando um café
as idéias faca, os argumentos pedra."

[PÁG 107.ÚLTIMO ROUND.JULIO CORTÁZAR.]

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Cristina

Por Viveca Santana
Os remédios que Cristina tomava não adiantavam mais.
As pílulas coloridas se amontoavam sob a geladeira. Talvez ela tivesse que comprar mais na farmácia,pensou todas as vezes que passou pela cozinha, como uma das providências básicas da rotina de dona de casa que era: comprar leite, pão, café, pílulas coloridas. Pílulas coloridas. Pílulas coloridas.
Continuava vendo luzes, passos perdidos no ar, caminhos e encontros inexistentes. Mesmo sem ver resultado algum no que o médico recomendara.
Cristina não era louca, não era dada aos prazeres alcóolicos, só enxergava mais do que os seus olhos podiam ver.
Já havia lido tudo sobre e em todos os casos, diagnosticavam estados depressivos, tristeza aguda, melancolia, todas as polaridades que íam e vinham sem ela nunca entender e para alguns, uma proximidade com o etéreo mundo dos mortos, que particulamente pra ela, nunca tivera graça.
Todos os dias chegava em casa ansiosa, tirava os sapatos pequenos na porta, uma de suas manias simples, tomava o banho mais demorado e quente que seu corpo podia suportar, enchia uma xícara de café e ficava horas na mesa tamborilando os dedos amarelados de cigarro, olhos azuis perdidos no tempo e cheios de lágrimas sem motivo.
As horas passavam rápidas e muitas vezes percebia que ficara muito tempo ali sem nada pra fazer, sem pensamentos pra pensar, o silêncio na casa toda - o café já frio na mesa, a vida passando lá fora, o vento batendo nas cortinas da sala. Não tinha fome.
Vestia o pijama sem graça de sempre, deitava na mesma posição de sempre, a mão no rosto e a cabeça num mundo longe, longe. O sono nunca vinha, passava.
Não, a dose daquele remédio nem adiantava mais, ela não sentia o doce nos lábios, os dedos sem firmeza e frieza e a sensação boa de preguiça, a vontade de descansar sem o compromisso de acordar, o sopro gostoso na nuca, o estado de segurança que ele lhe dava.
Aqueles momentos que Cristina dividia consigo não eram tristes, eram seus, o mundo não prendia ela mais em si e ela voava pra dentro dela sentindo cada parte do corpo tomando conta do peito, cabeça e sentidos.
Era como se tivesse finalmente comprado seu coração de volta, voltado a perceber o que era, sem necessitar das opiniões, das crises de aceitação, da carência que não passava nunca e se entranhava naquele corpo pálido.
Também não era hipocondríaca, nem viciada nos tais coloridinhos. Só não sabia mais como se segurar ali, não conseguia se ocupar sozinha daquele lugar que era seu, sentia-se insegura por não conseguir mais tocar os pés no chão e saber que não sairia mais daquele estado intenso e vivo das coisas - sem a perda de consciência que as pessoas viviam cobrando dela.
Aquela agonia pairava ali até que fosse novamente na farmácia.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

[...]

"descer em cima de ti mais um pouco, até mais ou menos um palmo diante dos teus olhos, e dizer eu te amo com a convicção de um míope/astigmático no escuro... sem trilha, sem blues, peleja de cego em becos alexandrinos, mineiro suicida de Émile Zola a palo seco, essas coisas que guardo e prezo da soma das ignorâncias, passa a régua iluminista de merda, essas coisas da feira, da peixeira e dos livros. o eu te amo como música final e única da banda esquerda do meu corpo que toca de ouvido, tripas & corazones, o rolling stones goats head soups, o nada que sou e era e o futuro-bundinha-pra-cima numa praia deserta donde te imagino ao meu lado, fui, baby, o resto é cartão postal que te mandarei do fim do mundo. "
Xico Sá

domingo, 4 de janeiro de 2009

Dom Casmurro/CXXXIII

Machado de Assis
Um dia, — era uma sexta-feira, — não pude mais.
Certa idéia, que negrejava em mim, abriu as asas e entrou a batê-las de um lado para outro, como fazem as idéias que querem sair.
O ser sexta-feira creio que foi acaso, mas também pode ter sido propósito; fui educado no terror daquele dia; ouvi cantar baladas em casa, vindas da roça e da antiga metrópole, nas quais a sexta-feira era o dia de agouro.
Entretanto, não havendo almanaques no cérebro, é provável que a idéia não batesse as asas senão pela necessidade que sentia de vir ao ar e à vida.

Não sou triste, mas por quê a tristeza pra mim, às vezes, é tão bonita?