quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

ELE

Por Viveca Santana

Hoje ele acordou e sussurrou no meu ouvido que era do mundo.
Que a vida ali tinha gasto, tinha tempo e ele precisava ir, perseguir com os olhos o que estava mais longe. Nunca havia sido meu, estava de passagem.
Esse foi um dos poucos dias que acordei com ele ao meu lado, compartilhando a respiração noturna, me abraçando forte, sem nem me conhecer tão bem, eu cheia de abismos de antes à minha volta, ele vestido com um carinho e respeito próprios que atraíam muito mais que qualquer beleza que pudesse existir a olhos nus.
Agora ele apertava o rosto no meu como se nos conhecêssemos há anos, a barba um pouco por fazer, o ronco de sono descontraído, que virava música gostosa pra dormir, essa era a parte irracional do sono dele que pra mim se tornou um dos momentos mais gostosos de toda noite - como se a vida da gente tivesse sido dividida em pedaços (antes e depois dali, só para mim, na verdade).
Ele tinha que ir e gostava de ver o mundo de longe, eu via isso nos seus olhos, mesmo quando dormia.
Esse encantamento não era dele por mim, mas ele me encantou só pra si de maneira solitária, no dia que me apontou as estrelas e me disse que as conhecia, que vivia numa delas.
Acreditei em cada palavra sua como se novamente acreditasse em algo e na idéia de que conhecíamos cada parte do corpo um do outro, como se os seus lábios me pertencessem de antes das estrelas surgirem nos meus olhos descrentes, perdidos e críticos.
Eu na minha vidinha fria, nunca tinha reparado nas estrelas, a beleza pra mim era sempre da Lua, da sua grandeza e essas mesmas estrelas, se tornavam coisas pequenininhas em volta, e eu não reparava.
Sempre tinha uma nuvem perto para apagá-las, nunca fizeram muita diferença, diante da minha visão realista do que era o céu - azul, longe, inatingível, acima de mim. Era uma noite de calor e eu pela primeira vez olhei as estrelas com vontade de olhar de novo e continuar olhando, sem me frustrar, sem ficar desatenta, sem me cansar.
Mas ele tinha que ir ver mais longe e ansiosa, me deixei perguntar por quê ele tinha aparecido tão tarde, tão rápido e tão intensamente.
Não havia nada de amor naquelas palavras ainda, mas havia uma magia tão grande, cega e viva que se eu percorresse o caminho daquelas estrelas por mais um tempo, o amaria sem o medo que antes tinha do amor.
O menino das estrelas não sabia,diante de tantas coisas que seus olhos ainda estariam por ver longe, mas tinha feito eu me tornar uma pessoa mais sensível, simples e até a presença dele, da estrela dele - passageira como as do céu- fez com que os encontros poucos se tornassem um presente.
Agora eu torcia para que ele levasse as estrelas pra onde fosse e deixasse uma só pra mim: eu iria continuar a olhar pra ela sempre que quisesse não esquecer.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

"...descobriu a Palavra fez amor com ela
em cada esquina embaixo de cada ponte
uma árvore de sorrisos nasceu sobre o cimento
discutiu-se com raiva te pagando um café
as idéias faca, os argumentos pedra."

[PÁG 107.ÚLTIMO ROUND.JULIO CORTÁZAR.]

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Cristina

Por Viveca Santana
Os remédios que Cristina tomava não adiantavam mais.
As pílulas coloridas se amontoavam sob a geladeira. Talvez ela tivesse que comprar mais na farmácia,pensou todas as vezes que passou pela cozinha, como uma das providências básicas da rotina de dona de casa que era: comprar leite, pão, café, pílulas coloridas. Pílulas coloridas. Pílulas coloridas.
Continuava vendo luzes, passos perdidos no ar, caminhos e encontros inexistentes. Mesmo sem ver resultado algum no que o médico recomendara.
Cristina não era louca, não era dada aos prazeres alcóolicos, só enxergava mais do que os seus olhos podiam ver.
Já havia lido tudo sobre e em todos os casos, diagnosticavam estados depressivos, tristeza aguda, melancolia, todas as polaridades que íam e vinham sem ela nunca entender e para alguns, uma proximidade com o etéreo mundo dos mortos, que particulamente pra ela, nunca tivera graça.
Todos os dias chegava em casa ansiosa, tirava os sapatos pequenos na porta, uma de suas manias simples, tomava o banho mais demorado e quente que seu corpo podia suportar, enchia uma xícara de café e ficava horas na mesa tamborilando os dedos amarelados de cigarro, olhos azuis perdidos no tempo e cheios de lágrimas sem motivo.
As horas passavam rápidas e muitas vezes percebia que ficara muito tempo ali sem nada pra fazer, sem pensamentos pra pensar, o silêncio na casa toda - o café já frio na mesa, a vida passando lá fora, o vento batendo nas cortinas da sala. Não tinha fome.
Vestia o pijama sem graça de sempre, deitava na mesma posição de sempre, a mão no rosto e a cabeça num mundo longe, longe. O sono nunca vinha, passava.
Não, a dose daquele remédio nem adiantava mais, ela não sentia o doce nos lábios, os dedos sem firmeza e frieza e a sensação boa de preguiça, a vontade de descansar sem o compromisso de acordar, o sopro gostoso na nuca, o estado de segurança que ele lhe dava.
Aqueles momentos que Cristina dividia consigo não eram tristes, eram seus, o mundo não prendia ela mais em si e ela voava pra dentro dela sentindo cada parte do corpo tomando conta do peito, cabeça e sentidos.
Era como se tivesse finalmente comprado seu coração de volta, voltado a perceber o que era, sem necessitar das opiniões, das crises de aceitação, da carência que não passava nunca e se entranhava naquele corpo pálido.
Também não era hipocondríaca, nem viciada nos tais coloridinhos. Só não sabia mais como se segurar ali, não conseguia se ocupar sozinha daquele lugar que era seu, sentia-se insegura por não conseguir mais tocar os pés no chão e saber que não sairia mais daquele estado intenso e vivo das coisas - sem a perda de consciência que as pessoas viviam cobrando dela.
Aquela agonia pairava ali até que fosse novamente na farmácia.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

[...]

"descer em cima de ti mais um pouco, até mais ou menos um palmo diante dos teus olhos, e dizer eu te amo com a convicção de um míope/astigmático no escuro... sem trilha, sem blues, peleja de cego em becos alexandrinos, mineiro suicida de Émile Zola a palo seco, essas coisas que guardo e prezo da soma das ignorâncias, passa a régua iluminista de merda, essas coisas da feira, da peixeira e dos livros. o eu te amo como música final e única da banda esquerda do meu corpo que toca de ouvido, tripas & corazones, o rolling stones goats head soups, o nada que sou e era e o futuro-bundinha-pra-cima numa praia deserta donde te imagino ao meu lado, fui, baby, o resto é cartão postal que te mandarei do fim do mundo. "
Xico Sá

domingo, 4 de janeiro de 2009

Dom Casmurro/CXXXIII

Machado de Assis
Um dia, — era uma sexta-feira, — não pude mais.
Certa idéia, que negrejava em mim, abriu as asas e entrou a batê-las de um lado para outro, como fazem as idéias que querem sair.
O ser sexta-feira creio que foi acaso, mas também pode ter sido propósito; fui educado no terror daquele dia; ouvi cantar baladas em casa, vindas da roça e da antiga metrópole, nas quais a sexta-feira era o dia de agouro.
Entretanto, não havendo almanaques no cérebro, é provável que a idéia não batesse as asas senão pela necessidade que sentia de vir ao ar e à vida.

Não sou triste, mas por quê a tristeza pra mim, às vezes, é tão bonita?