segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Abandono

Por Viveca Santana

Perdeu o dom da melancolia em algum dia frio de janeiro, ou do inverno que marcava a sua pele quente.
Perdeu em cima de alguma mesa de café, em alguma estação de metrô ou embrulhado em um papel que não servia mais e persistia na mochila, enclausurado.Resolveu finalmente desfazer-se do dó de si, apartar coisas que não tinham importância na sua atual vida, sem penar. Foram pro lixo as coisas alheias a sua razão de viver e que machucavam, como corte com faca amolada e íam marcando seu coração com cicatrizes que não secavam, que magoavam a cada decepção.
Apartou-a sem pena.
Quando deu de ombros pra melancolia, foi como se ela tirasse os pés daquela superfície pendente de equilibrista. Resolveu se aprumar, seguir em frente sem o medo de sofrer e de se decepcionar. Sentiu um alívio alucinante.
Percebeu que era o momento de se desfazer, de jogar fora tudo o que impedisse o encontro com sua paz. Finalmente andava descalça no chão duro, frio e de concreto e não mais em nuvens e sonhos que se perdiam no horizonte e a impediam de seguir adiante. Essas mesmas nuvens a protegiam do mundo real.
Perdeu finalmente o medo de caminhar, perdeu o lamento, o desencanto e resolveu seguir seu caminho sem apoiar-se no ombro de alguém ou desejar o calor humano, como um campo de força viciante. Não precisava mais de tapinhas na costas para não hesitar.
O mundo definitivamente não era como ela queria que fosse.
Foi buscar sua felicidade em si mesma, dedicando-se mais a não esconder-se, a lançar-se no amanhã como algo que só dependia de suas ganas de viver.
E assim ela foi atrás do que lhe é de direito, do que ela sabia que estava por vir sem dó, sem lamento.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Para uma avenca partindo

"Uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço....[...]Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender."

Caio Fernando Abreu.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Terra

Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens...

...

Eu sou um leão de fogo
Sem ti me consumiria
A mim mesmo eternamente
E de nada valeria
Acontecer de eu ser gente
E gente é outra alegria
Diferente das estrelas...

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

...

Por Viveca Santana


O acaso era uma das coisas comuns no dia a dia dela, surgia em visitas violentas e sem avisar, escondia-se em momentos de preguiça e reaparecia com sua vontade de desorganizar tudo.
Já havia se acostumado com as surpresas que a vida pregava e algumas vezes, diante das repetições, já sentia os acontecimentos, com uma predestinação ou um convite à visão que algumas vezes não queria ter. Finalmente algo acontecia de diferente e desde o início ela sentia os sinais, mas alternava os caminhos, fugindo da encruzilhada que o destino impunha como resposta à direção correta que se deve tomar e seguir em frente. Às vezes tomava o rumo de descampados, os caminhos mais longos, íngremes, difíceis e cheios de espinhos, para evitar a normalidade das coisas e acreditando evitar lágrimas, sim, como se pudesse.
À sua maneira, fugia dos encontros com o sofrimento, cerrando o seu coração com um cadeado sem chave, impondo suas vontades, traçando seus caminhos numa independência dolorida e criando histórias para parecer que as rédeas da vida estavam em suas mãos.
Aí o acaso aparecia, e com os pés molhados, destruía seu castelo de areia e a obrigava a recomeçar outro castelo, outro sonho, outra história, como se tudo tivesse uma frivolidade infinita, como se tudo fosse muito fácil reconstruir.
Só que dessa vez o acaso veio e a empurrou forte enquanto estava em êxtase e atida em coisas novas. Tornou a vida dela uma grande piada, um encontro que atravessou às cegas um mar infinito e acabou num lugar que ela já conhecia sem nunca ter ido, com uma pessoa que nunca tinha visto de perto, mas sabia que existia por ali.
Era como se a vida dela fosse metaforizada em um quebra-cabeças, uma colcha de retalhos, que alguns pedaços ela tinha perdido por aí ou tomaram dela e agora ela retomava o direito de encontrar aos poucos, juntando com dificuldade, o que a vida teimava em mostrar e ela na sua cegueira não enxergava.
Agradecia ao acaso por agredi-la tão docemente e ter mudado sua história.